No dia 13 deste mês, uma ex-professora inglesa chamada Emma Tamsin Kelty, de 43 anos de idade, foi assassinada às margens do Rio Solimões no Amazonas. Desde fevereiro ela remava a partir dos Andes Peruanos em direção a Iquitos, também no Peru, de onde continuou a navegação rumo a Manaus – dali, sua intenção era seguir até Belém do Pará e finalizar a aventura.
Mas depois que cruzou a fronteira entre Peru e Brasil, Emma começou a sofrer várias ameaças a sua integridade física praticamente a cada atracagem para descanso, principalmente quando parava para descansar. O jornal inglês The Guardian listou o que ela já tinha postado nas mídias sociais sobre isso, como:
a) dia 22 de agosto, depois de remar com muita dificuldade corrente acima para chegar a uma praia para descansar, deu de cara com um homem com lhe brandiu um facão e comia algo que tinha matado. Enquanto ela remava para longe o mais rápido que podia, continuou ouvindo os gritos dele;
b) pelos próximos dias ela reclamou de interrupção do sono por causa de estranhos, dizendo que ficava mais cansada a cada dia. “Espero que eu não tenha [quatro] caras a mais ‘voltando para me visitar hoje depois que a noite cair'”;
c) após ótimas boas-vindas e um dia e uma noite em São Paulo de Olivença, dois homens vieram num barco perto de onde ela tinha parado e simplesmente ficaram lá, impedindo-a de se trocar. Ela tentou puxar conversa, mas eles continuaram em silêncio;
d) no dia 28 de agosto ela disse que estava “oficialmente para além do cansaço”, afirmando que todas as noites alguém com lanterna vinha até sua barraca.
Quando não eram estranhos ameaçando-a, era a natureza que cobrava um preço: muitas vezes era uma luta para manter a barraca em pé em meio a tempestades tropicais e ainda tinha a constante umidade do ar acima de 80%.
Poucas vezes descreveu, como no dia 5 de setembro, a tranquilidade de remar como esperava que seria, sentada numa praia isolada ao sol: “Tão tranquila e simplesmente perfeita”. Mas isso também duraria bem pouco…
Outro fato bizarro foi que no dia 28 de agosto um amigo dela, que a havia ajudado na parte peruana da aventura, foi avisado de que ela havia sido assassinada próximo de Iquitos e que o corpo havia sido encontrado. Desesperado, escreveu para o irmão dela, na Inglaterra. Depois, por meio do localizador Garmin inReach, enviou uma mensagem para ela e contou o ocorrido. A resposta de Emma foi: “Vamos torcer para que não seja uma premonição”.
Morta por causa de alguns eletrônicos
No dia 10 de setembro parece que alguém a alertou sobre Coari, uma área ao longo do rio conhecida por seus perigos por causa dos ratos/piratas d’água, que matam para roubar. No que se transformou numa mensagem tétrica, ela ironizou num post: “Então, em Coari ou perto de lá (a 100 km de distância) meu caiaque será roubado e serei morta também. Legal [emojis]”.
No dia 12 ela disse que havia visto vários homens armados com rifles e flechas em barcos navegando pelo rio.
Última postagem
Sua última postagem foi na madrugada do dia 13, horas antes de ser morta: “Uma da manhã [emoji] que mudança dramática num dia… mas assim é o rio… cada km é diferente e só porque uma área é ruim não significa que a próxima seja. [emoji]”.
Acampada numa ilha chamada Boieiro, perto da comunidade Lauro Sodré em Coari, a corajosa inglesa (que havia atravessado boa parte do Peru a remo e uma porção considerável do Solimões em território brasileiro (ao todo 3.600 km com a força dos braços em 89 dias); caminhado, em 2015, a longa Pacific Crest Trail, trilha de mais de 4.000 km nos Estados; e em janeiro deste ano tornou-se a sexta mulher no mundo a chegar ao polo sul – após três meses de caminhada puxando um trailer por até 12 horas por dia com seus equipamentos e mantimentos) foi abordada inicialmente por um adulto e um menor (17 anos) que chegaram numa canoa. Em seguida, atracaram mais cinco comparsas e ali, no meio do nada e na maior covardia, ela foi atingida com dois tiros de espingarda e, como se não bastasse, ainda cortaram sua garganta antes de lançarem o corpo, que ainda não foi encontrado, no rio com o qual ela tanto sonhou. Tanta insanidade para quê? Para roubarem um GPS, um celular, uma câmera GoPro, um cartão de memória e um tablet e garantirem que ela não os entregaria. E tudo aconteceu exatamente no município de Coari, que ela ironizou como o local onde poderia ser morta em seu post do dia 10 de setembro…
Mas como o crime foi descoberto se não houve testemunhas?
GPS com rastreador por satélite
Emma carregava um GPS Garmin InReach – como o amarelo da foto acima – equipado com tecnologia de rastreamento por satélite (veja detalhes aqui). Sua localização era monitorada ao longo do caminho e, por meio de mensagens, conectava-se com o suporte da empresa de monitoramento, com amigos e com seus irmãos e, se fosse necessário, também podia enviar pedido de socorro. E foi o que ela fez por volta das 22h do dia 13 de setembro. Os controladores que receberam o SOS entraram em contato com um comando da Marinha em Manaus (a mais de 300 km de Coari), informaram que algo de errado havia acontecido com ela e o ponto (em coordenadas) de onde o sinal havia partido. Infelizmente, porém, naquela hora da noite nada podia ser feito.
Nas primeiras horas da manhã seguinte, dia 14, uma aeronave foi enviada à região para iniciar as buscas. No outro dia, 15, outra aeronave, uma lancha e um navio-patrulha reforçaram a equipe. À tarde foram encontrados os vestígios de sua passagem na pequena ilha onde o crime aconteceu (caiaque danificado, utensílios, calçados e roupas, entre outros itens menos valiosos aos olhos dos marginais). A polícia foi acionada, começou a investigação e, graças a uma denúncia anônima, chegou ao menor de 17 anos e à identificação dos outros seis participantes do latrocínio. Até o momento, quatro estão presos, um foi morto numa briga e dois ainda estão foragidos.
Esse é um caso extremo em que o socorro chegou muito tarde. Por outro lado, se não fosse o serviço de rastreamento ninguém saberia em que ponto do rio a remadora havia desaparecido. Além disso, tudo poderia ser considerado apenas como um acidente no qual algo de errado havia acontecido com seu caiaque, ela se afogou e a história acabou, pois no início das investigações a Marinha brasileira partiu dessa premissa e não de que ela havia sido vítima de latrocínio com tanta crueldade.
Por que contar tudo isso?
Primeiro, por causa da forma chocante com a qual Emma foi morta; segundo, porque anos atrás planejei uma expedição de caiaque pelo Rio Negro na companhia de um amigo – até comprei um igualzinho ao da Emma, inclusive a cor, e lembro bem da minha animação (que imagino ter sido a dela) durante o planejamento, mas depois acabei desistindo porque fui ficando com muito medo em relação à segurança exatamente quando, ao fim de cada dia, tivéssemos de aportar para descansarmos; terceiro, por ela ser uma mulher corajosa vivenciando uma aventura que tinha tudo para ser incrível; quarto, porque até entrar no Brasil ela não havia se sentido tão ameaçada, o que indica que há algo de muito errado com nossa cultura machista e com o nível de violência no qual estamos inseridos; quinto, porque ela não pode ser culpada por estar vivendo um sonho; sexto, porque gostaria que sua memória fosse preservada e, escrever este post, é uma forma de homenageá-la; sétimo, porque ela não levou a sério os sinais, os conselhos e talvez sua própria intuição (diante das constantes ameaças que encontrou pelo caminho) para abortar os planos, enfiar o caiaque no próximo barco de passageiros que encontrasse e ir remar em outro país – esses sinais e minha intuição não negligencio de jeito nenhum e recomendo a todo mundo que ouça e aja quando eles aparecerem.
Além disso, como gosto demais de atividades ao ar livre e tenho amigos que partilham da mesma paixão, comprovo a importância de não abrirmos mão de uma tecnologia tão incrível, que é a de rastreamento via satélite, que pode nos ajudar em situações de perigo (seja por ameaça física ou por acidente).
Além da Garmin, um rastreador muito utilizado é o da Spot (veja aqui).
Que dor ver um sonho interrompido assim
É lamentável que eventos horríveis como esse aconteçam de forma tão gratuita e atinjam alguém que tudo o que queria era viver uma aventura, voltar para casa para compartilhar tudo e planejar seu próximo projeto. A opção de Emma de partir para colocar em prática desejos por mais emoção em sua vida aconteceu em 2015, quase um ano após a morte de seu pai, vítima de câncer, quando sentiu que não fazia mais sentido adiar, que a vida é muito curta para abrir mão de sonhos.
Que os assassinos de Emma sejam punidos – embora em um ano o menor de idade estarão solto novamente e nada do que acontecer com os demais vá trazê-la de volta.
Felizmente, há histórias de sucesso entre aventureiras, como a de Helen Skelton, jornalista inglesa que em 2010 percorreu 3.234 km do Rio Solimões – mesmo percurso de Emma no Brasil – em quase seis semanas. Mas ela não fez isso sozinha. Embora fosse responsável por conduzir o caiaque com a força de seus braços, durante o trajeto foi acompanhada por um barco de apoio onde se protegia para dormir, tomar banho e fazer as refeições.
Outra, é sobre Renata Chlumska (veja aqui), que remou e pedalou 18.000 km ao redor dos Estados Unidos em 2005/2006.
Com o que vivenciou até seu trágico fim, Emma deixou um legado inspirador, mostrando que nós, mulheres, podemos ir mais longe para realizar os sonhos mais aventureiros – mas não podemos jamais perder de vista o aspecto de segurança.