Depois que conheci a região montanhosa do sul de Minas Gerais, em 2010, comecei a sonhar em morar na roça, n’algum lugar desse canto tão lindo e deixar São Paulo capital para trás. Finalmente, depois de vários ajustes, em outubro de 2013 foi dada a largada para o processo de mudança, em dezembro do mesmo ano ela foi concretizada e, portanto, dois anos e meio atrás o sonho se realizou. E cá estou a 2 km de uma cidadezinha encrustada na Serra da Mantiqueira, numa casinha alugada com vista para morros, de frente para o por do sol e cercada por árvores e muito verde; consumindo água que vem de mina; ouvindo mais os sons de pássaros e os latidos das minhas cachorras e de outros cães ao longe e um ou outro avião que corta o céu lá no alto – nada de buzinas, de motos escandalosas, de carros e de ônibus naquele vai e vem constante; respirando ar puro vinte e quatro horas por dia; esquecendo por completo que um dia minhas roupas já foram passadas a ferro; aprendendo o jeito mineiro de ser na convivência com quem é do lugar.
Eu nunca tinha tido cachorros na vida e, na verdade, tinha medo deles. Também não conseguia entender a relação de carinho e de companheirismo entre caninos e humanos. Hoje, sou apaixonada pelas duas cachorras que tenho. Principalmente depois da primeira que adotei, meu coração amoleceu total e hoje não consigo não me compadecer vendo cachorros abandonados, mal-cuidados ou em situação de necessidade. Não tenho mais problema em chegar e tentar fazer amizade com outros cães e adoro sair para subir morros ou para fazer caminhadas na companhia das duas.
Não tenho a mínima saudade de cidade grande e quando preciso ir até São Paulo, vou arrastada, por pura obrigação mesmo. Por outro lado, hoje tenho muito mais paciência com o trânsito caótico, com a poluição e com outros lados negativos de cidades grandes porque sei que aquela realidade dura é passageira para mim, que num cantinho da Serra da Mantiqueira tem um lugar incrível esperando pelo meu retorno.
Por outro lado, morar na roça é um grande desafio. Aqui, sinto a indomável e incontrolável força da natureza em sua plenitude. E quando ela “se rebela” pode ser assustador. Quando nuvens negras se formam e avançam sobre a serra, não há nada para me distrair. Preciso ficar atenta. O vento é muitas vezes superforte, se a chuva também for forte, a água escorre pelos vidros, pelas paredes e pelo terreiro da casa formando um pequeno riacho, os raios cortam o céu em várias direções, os trovões explodem em intensidades variadas e, com tudo isso, tudo o que posso fazer é observar. Tudo aqui é mais cru, mais rude. Em alguns momentos tenho medo dos eventos dessa natureza que, na calmaria, é uma grande companhia.
Na seca, a poeira torna as estradas de terra – que estão em todas as direções, como para chegar até minha casa – um desafio maior, principalmente quando há outro carro na frente do seu; quando chove, o desafio é a lama e muitas vezes é necessário usar o 4×4 do carro. Mas não me importo com isso, gosto de estradas de terra para dirigir e para fazer minhas caminhadas, minhas corridas e minhas pedaladas.
Não poderia morar na roça, porém, se não pudesse ter acesso à internet não só por questões profissionais, mas também por causa da facilidade de interação com as pessoas que amo e que estão distantes e também para continuar antenada com o que acontece no mundo. Gosto disso. Outra coisa que amo aqui é a comunidade de pessoas que, como eu, deixaram a cidade grande para trás para construir uma nova história e que não se importam, por exemplo, de “perder” tempo batendo um longo papo num encontro casual pela cidade.
Aqui, minha vida social é mais intensa porque compareço a 99% dos eventos para os quais sou convidada (e também adoro receber os amigos). Não tenho preguiça de ir a lugar algum – e às vezes é preciso dirigir uns 15 km, como eu disse, em estradas de terra para chegar a casa de algum(a) querido(a). Somos mais fraternos e companheiros. Há pouco, criei um grupo no Whatsapp para que pessoas, como eu, que vivem distantes da cidade possam pedir e contar com ajuda em qualquer situação de emergência. Afinal, aqui não temos bombeiros nem Samu de plantão.
Em São Paulo, mesmo com tantas opções à disposição – teatros, cinemas, restaurantes, bares, shows, casas de amigos, parques -, eu não tinha pique para sair não só por causa das distâncias, mas principalmente do tempo gasto mesmo nos percursos muitas vezes curtos e do medo constante da violência. Por exemplo, a exato um quarteirão do condomínio onde eu morava na zona oeste, ficava um restaurante japonês que eu gostava muito, mas não dava para ir andando até ele. Apenas um quarteirão! Por quê? Por causa dos assaltos na rua, de sequestro-relâmpago, de roubos de carro em frente à portaria do meu condomínio, de tiros.
Não que aqui na serra eu relaxe 100%, mas não dá para comparar a tranquilidade e a qualidade de vida que tenho agora.
Tem gente que quer viver num lugar assim, mas não tem coragem de dar o passo e de fazer as mudanças necessárias – é preciso diminuir o ritmo e, muitas vezes, fazer ajustes nos gastos. Tem gente que quer viver num lugar assim, mas tem um(a) namorado(a), um marido, uma esposa ou um(a) companheiro(a) que não compartilha esse sonho – felizmente eu tenho – e, em nome do relacionamento, vai ficar na vontade e na realização de viagens periódicas e geralmente rápidas que, muitas vezes, só aguçam ainda mais a vontade. Tem gente que quer viver num lugar assim, mas pode não saber o que fazer com o tempo que sobra, com o silêncio ao redor, com a falta de distrações e aí, naturalmente, é preciso olhar mais para si.
Relacionamentos amorosos se desfizeram aqui. Talvez já estivessem desgastados na cidade grande, antes da mudança. Lá, onde o agito e o cansaço geralmente levam a culpa por muitas insatisfações internas não conversadas, não manifestadas. Aqui, de repente, sem ter o que culpar, finalmente as pessoas se olham e se despedem. E novos laços se formam e a vida segue seu curso com as pessoas levando seu coração mais ou menos partido.
Por necessidade e também por curtição, aprendi muitas coisas que nunca sonhei antes, como fazer alguns serviços de pedreiro graças ao aprendizado que tive num curso realizado pelo Sesi/Senai em parceria com a prefeitura da cidade; esticar arame farpado e fazer consertos na cerca ao redor da casa, graças ao ensinamento de um jardineiro que veio trabalhar um dia para mim; pintar paredes e envernizar madeira; lixar madeira com lixadeira elétrica; amarrar tela para cercar o terreno e manter as cachorras protegidas; roçar grama com roçadeira elétrica com fio; plantar grama; fazer trabalhinhos com madeira; fazer escada no barranco e muito mais. Curto demais principalmente o trabalho que é realizado ao ar livre.
O fato é que eu era feliz antes, mesmo na Pauliceia Desvairada, mas agora sou beeeeeem mais feliz. Acho bárbaro acordar e olhar essas montanhas e ver, claramente, que um dia nunca é igual ao outro. Às vezes tem sol, mas o brilho pode ser diferente dependendo da hora que abro a porta do quarto para ver lá fora; às vezes tem neblina e ela tem intensidades diferentes; também tem céu nublado, com mais ou menos nuvens, com nuvens mais ou menos densas, mais ou menos escuras; tem dias de muito frio, outros nem tanto e muitos de muito calor; pode ser que o dia amanheça lindo e em poucos minutos tudo muda, nuvens pesadas se formam e cai uma tempestade torrencial. Aqui, a noção de impermanência acentua-se, pode ser comprovada a todo instante. Tudo está o tempo todo por um triz – a natureza, a gente…
Tem o aspecto saúde que preocupa um pouco quando moramos num lugar como este, tão pequeno, tão sem recurso, distante de uma cidade com pelo menos um bom hospital. Mas o medo de doença ou de uma emergência médica não justificaria, para mim, continuar morando na capital paulista. Se um dia for necessário algum tipo de socorro ou de tratamento, alguma coisa será feita. Não dá para deixar de viver um sonho por causa de um possível “se”. Afinal, toda a população local vivencia as mesmas necessidades nesse aspecto e tudo acaba se resolvendo.
Outros probleminhas: a agência dos Correios só funciona das 8h30 às 12h e geralmente tem fila; a única agência bancária é do Banco do Brasil; o Bradesco tem um posto de atendimento sem opção de saques depois que o caixa eletrônico foi explodido por marginais no ano passado; clientes do Bradesco podem sacar num caixa expresso num dos mercados da cidade, mas só se tiver dinheiro disponível de outros pagamentos realizados anteriormente naquele dia; a única operadora de celular é a Vivo, pelo menos por enquanto; o sinal 3G é capenga, principalmente quando a cidade está lotada de turistas; a internet via rádio fornecida por dois provedores também é bem deficiente – embora, claro, é melhor do que não ter nada.
Mas tudo isso é pequeno diante da minha certeza de que, por ora, não quero outra vida. Por outro lado, por mais que eu ame aqui, isso não significa que eu queira ficar para sempre. Já mudei tantas, mas tantas vezes – de cidade, de país, de residência numa mesma cidade – que faz tempo que meu apego se foi. Se amanhã for outro lugar por escolha, certamente viverei com a mesma paixão e a mesma inteireza.
Puxa, mas que distração! Chego ao fim do texto e nem te contei sobre o céu salpicado de estrelas nas noites sem nuvens e sem lua, tampouco da força do luar quando o céu também está limpo e não há nada para barrar sua luz. Bom, ficam as imagens abaixo para você comprovar porque se eu continuar a contar mais histórias deste lugar você pensará que cheguei ao paraíso. (rs)
Texto: Amandina Morbeck
(saiba sobre mim aqui)
26 Respostas para Morar na roça